Deixe a luz passar!

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Fiat lux!!!

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Tráfego Aéreo!!!

A noite começara como sempre começava naqueles tempos. Um avião da Varig chegava por volta das 19:00 horas, 23:00 UTC (Hora Universal Coordenada, já traduzida para o português, antigamente dizia-se GMT, Greenwich Middle Time) e eventualmente um ou outro gato pingado aparecia para quebrar nossa rotina de controladores de tráfego aéreo na cidade de Campo Grande.
Bem antes de entrar em nossa área de controle, a Terminal Campo Grande (TMA-CG), com suas, então, 54 milhas náuticas(NM), cem quilômetros, de raio, o avião da Varig nos chamava para saber informações das condições de operação do aeródromo, que constavam de visibilidade horizontal e vertical, temperatura e ponto de orvalho, pista em uso, tipos de nuvens, ajuste de altímetro, nível de transição e hora certa. Feito isso o avião voltava à freqüência do Centro de Controle de Área (ACC) até iniciar a descida e cruzar um nível de vôo específico, para, aí sim, continuar suas comunicações com o Controle de Aproximação (APP) e por fim passar à freqüência da Torre de Controle (TWR) e pousar.
Ocorre que um desses eventuais vôos que quebravam nossa rotina era um avião da Força Aérea, chegando de uma missão local em nossa Terminal. Fez tudo como de costume. Recebeu suas instruções, mas decidiu continuar em vôo local, agora na Zona de Tráfego (ATZ), área de jurisdição da TWR. Até aí tudo normal, sem nada que o diferenciasse de outro vôo comum. Acontece que o Varig a essa altura já tinha sido transferido ao APP, é assim que dizemos, e como a visibilidade era excelente, mesmo estando distante, questionou sobre a existência de um possível tráfego essencial no setor Oeste. Para ele que vinha de São Paulo, isso significava ir de encontro ao "tal" tráfego. Eu o informei que não havia qualquer tráfego no setor Oeste, mas sim o tráfego de uma aeronave Bandeirante, da Força Aérea, porém no setor Sudeste. Ou seja, não podia ser esse Bandeirante que ele avistava.
Esse fato intrigou-me e fiquei inquieto na TWR. Olhei várias vezes para o setor Oeste e nada vi. Ao informar isso ao Varig, recebi uma mal humorado retruco do piloto, que afirmava haver, sim, um tráfego e ainda estava com as luzes de navegação piscando e se eu não o via, algo estava errado. Isso queria dizer que eu estava no mínimo cego, para não pensar coisa pior, como por exemplo, que eu era incopetente.
Minha calma habitual para controlar estava se esvaindo, quando para meu desespero o Bandeirante, que até então estava calado, resolveu sair em defesa do Varig dizendo que também avistava o tráfego. Não é possível que esses caras estão vendo um tráfego e eu não. Será que estou mesmo ficando cego? Pensei.
Agora o Varig tinha a posição exata, inclusive que cruzava sua proa, indo para o Norte. Nesse momento, queria estar em outro lugar, como queria! Mas eis que de repente o Varig retoma o diálogo todo reticente, dizendo tratar-se de um carro de polícia e não um "tráfego". Olhei para a rodovia e constatei que era realmente um carro. Dava para ver as luzes por entre os eucaliptos. O alívio que tive é impossível de ser retratado agora, que já faz mais de vinte anos do fato.
Eu como bom controlador não podia deixar barato todo aquele estresse vivido, mandei:
- Varig, esse cara não tava voando muito alto para um carro, não?
Silêncio no rádio.
Entra o Força Aérea:
- Tudo bem Torre, mas que parecia um tráfego, parecia!
Eu rindo, sem condições de segurar:
- Era um tráfego, mas só que não era aéreo, era rodoviário, né?!?!?!
A partir daí, foi seriedade total nas comunicações. Nenhum dos dois ousou se referir ao tal carro e pousaram restringindo-se à fraseologia técnica padrão.
Nem boa noite desejaram, mas eu sim, e ganhei a noite!

6 comentários:

  1. Caro Amigo,
    É sempre um prazer enorme poder ter um contato com vossa pessoa e fico mais feliz ainda em saber que há mais um canal de comunicação em aberto.
    Li a sua experiência vivida em Campo Grande e confesso que esta realmente foi uma novidade para mim.
    Essas histórias nos remetem ao passado e como dizem "Recordar é viver".
    Sei que você tem muitas experiências a relatar, mas que nem tudo será cômico ou terá um final feliz como essa, mas de qualquer forma será ótimo poder ler e conhecer os detalhes de outras tantas situações vividas.
    Abraço enorme!!! Limeira

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  2. com que facilidade deslizas as letras. Texto gostoso de se ler. Espero que vc esteja se organizando para escrever mais e, quem sabe, isso não acabar numa capa dura? Espero ser convidada para o lançamento....

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  3. Ex-controlador? Hei, sua licença não expira nunca, irmão.

    Valeu a empreitada. Força aí.

    Bemildo.

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  4. Parabens.
    Muito boa iniciativa, muito interessante. Uma leitura que nos prende a atenção e nos aproxima do trabalho de um controlador de tráfego aéreo... Profissão tão distorcida pela mal informada mídia televisiva...
    Muito bom, espero poder ler outros textos como esse.

    Um abraço
    Do amigo, Carlos

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  5. Meu querido Irmão!
    Parabéns pela iniciativa de relatar suas experiências profissionais. Com certeza serão de grande proveito para todos os amantes do Tráfego Aéreo. Levei um susto apenas quando você disse sobre sua "calma habitual"...rs. Você sempre foi um verdeiro "monge"...rs!
    Um forte abraço do seu irmão de sempre,
    Sperandéo.

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  6. Hoje eu resolvi comentar um post antigo(aliás, não sei por que não o fazemos sempre, só comentamos o que está em cima)gosto muito das suas histórias. Na verdade não sou muito bom para comentar, mas aqui me sinto mais a vontade. Abraço

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