Deixe a luz passar!

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Fiat lux!!!

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Seria, mesmo, culpa da parteira?


Alguns anos de formado e alguma prática odontológica levada a sério. Muita dedicação e estudo creditaram-me boa reputação junto a alguns colegas de profissão. Isso era muito reconfortante, gratificante e mais alguns “ante”.

Até que enfrentei o meu primeiro desafio perante um cliente. Era um homem jovem. Um camarada bem extrovertido, brincalhão, bem-humorado mesmo. Foi indicado por uma colega para uma cirurgia de siso, coisa comum em consultório, mas que exige, como todos os procedimentos, muita atenção, dedicação e planejamento.

Feita a anamnese, o paciente foi instruído a fazer exames radiográficos para localização do dente retido e incluso- é assim que nos referimos aos tais sisos- para se finalizar o planejamento e marcar a data da tal cirurgia.

Passado o tempo normal e previsto para a entrega dos exames, ele os trouxe. Discutimos a melhor data, fiz algumas recomendações de praxe por escrito e nos encontramos no dia da cirurgia, uns dez dias mais tarde. Perguntei se estava tudo bem, se havia tomado o medicamento prescrito, se estava decidido e se poderíamos começar os trabalhos. Respondeu que sim, que o quanto antes acabássemos melhor seria. Concordei e comecei a prepará-lo.


Uma piadinha sem graça aqui, outra ali (isso é o que melhor um dentista faz), e fomos progredindo até chegar ao ponto de anestesiá-lo. Feita a anestesia e a incisão, a divulsão dos tecidos moles: gengiva e mucosa adjacente, cheguei ao osso e comecei a removê-lo para acessar o dente e começar a retirá-lo. Até aí tudo normal.

Bem, nem tanto. O paciente começou a se mexer demais, o que me causou uma certa preocupação. Mas pensei tratar-se de uma “dorzinha” ou um incômodo por sentir-se invadido na sua intimidade. Não era, ele insistiu nos movimentos e levantou a mão. Nessa hora eu comecei a parar e já fui emendando:
- Oi, fulano, está doendo? Agüenta um pouquinho, já estou quase acabando, só falta segmentá-lo e pronto. Tá fácil, já vai sair.


Agora livre das minhas cem mãos dentro de sua boca, pôde se expressar com tranqüilidade, dizendo o que o inquietava tanto:
- Sabe o que é “doutor”, não está doendo não, mas é que o senhor está com o dedo no meu olho e....

Sem deixar que ele terminasse o que iria dizer, imediatamente me desculpei e completei dizendo que não era raro isso acontecer. Isso, porque nos concentrávamos no ponto interno e acabávamos penalizando a face e seus órgãos. Aí veio o pior. Eu lhe pedi que tivesse um pouco de calma, pois tudo se resolveria rápido e que eu teria mais atenção, sem enfiar o dedo em seu olho.

Pensei com isso ter resolvido a questão, quando ele me saiu com a seguinte explicação:
- Não é isso “doutor”. É que eu fiz um transplante de córnea por esses dias e o senhor estava pressionando exatamente esse olho.


Gelei. E não contive minha irritação. Aleguei que havia lhe perguntado sobre as possíveis cirurgias já feitas e se tinha alguma próxima à data dessa em curso. Afinal, uma cirurgia de siso não pode ser prioritária em relação a uma tão importante quanto uma de transplante de córnea.


Ele muito tranqüilo me disse que estava tudo bem e que poderia continuar. Eu já meio desorientado, mas sem poder parar àquela altura, continuei. A mente não parou de processar os acontecimentos, então soltei essa pérola:
- Sabe, fulano, você me desculpe mesmo. Mas é o seguinte, você pode até xingar a minha mãe, ok?
Ele acenou, pedindo para eu parar de novo. Parei e ele prosseguiu:
- Não “doutor”, nada disso. Sua mãe até que é gente boa, quem não presta é a parteira que deixou o senhor vir ao mundo.

Tive várias vontades inconfessáveis. Mas, fiz a única coisa certa e possível naquela situação: sorri, sorrimos todos; e concordei.


Só não consigo entender como ele sabia que eu tinha vindo ao mundo pelas mãos de uma parteira. Uma parteira não; a parteira. Minha tia e depois madrinha, Maria de Lourdes Alves Lemucchi. Penso mesmo que ela era uma fada, e das boas.

O dente? Tirei sim.

O paciente? Depois que removi a sutura, nunca mais soube dele.

10 comentários:

  1. rsrs.. és dentista então..rsrs

    É dentista tem dessas de contar histórias e querer que a gente responda coisas com as mãos dentro da boca da gente, na verdade.. os que eu conheci.. falavam sozinhos.. esperando respostas que não vinham, já que eu estava com a boca ocupada..

    Tenho uma boa relação com dentistas..até por que raramente precisei de algum, tive sorte com os dentes (está ai uma coisa que tive sorte na vida..rsrs), os meus dentes de leite tirei todos em casa, nao precisei de aparelho, nasceram todos sadios..e me orgulho de dizer que aos meus 26 anos nao sei ainda o que é uma carie..

    A uns 6 meses fui em um dentista, estava com um furinho na parte interna do dente da frente (o dentao de coelho) estava preocupada, achava que era a tal da carie que nao conhecia.. fui preocupada, mas era somente um desgaste, mas eis que o moço la.. implicou com os meus dentes do siso.. que nasceram todos normais e nao me deram trabalho algum e nao estao estragados..mas ele queria por que queria tirar um pq esta muito no fundo e dificulta a higienização..

    Ai eu perguntei se era obrigada a fazer isso, ele disse que nao, mas que no futuro poderia dar caries..

    resumindo..o futuro dele ta passando e ainda nao tive problemas, o pq eu ia tirar meu dente..rsrs?

    Deixando isso pra la.. ate entendo a agonia do seu paciente, rsrs e ate que pode ser culpa da parteira.. dizem que as crianças que nascem em hospitais elas ja nascem mais assustadas por causa daquela luz dos medicos.. e de parteira..levam uns bonnns tapas para entrar ar nos pulmoes...

    Entao é culpa da parteira sim, que pode ter errado a mao..na hora dos tapinhas..rsrs

    Bjo, e um otimo final de semana...

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  2. Oie,

    Adorei seu post, muito divertido, apesar de saber que o texto foi feito com base em fatos tensos de um consultório dentário!E que vc deve ter ficando muito bravo com esse paciente negligente que não avisou sobre o transplante!

    A culpa não foi da parteira, foi da mãe dele que não fez força para ele vir ao mundo, e isso fez com que o cérebro dele não funcionase direito na parte correspondente à memória!KKKKKKKKK

    bjus

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  3. Gostei. Dentistas devem ter muitas histórias.
    Fiquei revendo os dentistas que já estive.

    abraços, bom final de semana.

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  4. Zé,

    Me diverti muito nessa sua prosa, tão mineira! =) Estava com saudades de passear por aqui.

    Fiquei imaginando tudo, me remexendo na cadeira e sorrindo com o desenrolar das suas palavras. A gente passa por cada situação nessa nossa vida, algumas tão corriqueiras, que ficam pra sempre guardadinhas.

    p.s.: Até hoje nada dos meus sisos darem sinal de vida. Confesso ter certo pânico de tirá-los e nem sei se fico feliz ou triste deles nunca terem aparecido.

    Adorei esse dedo de prosa.

    Beijo!

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  5. Adorei o post, não sou dentista, mas tenho uma clinica e passo cada uma com os pacientes, cada história q um dia publico no blog...

    Qt ao selinho, qd eu ganho algum eu copio direto mesmo da tela clicando com o botão esquerdo do mousse e salvo.. depois publico...rs

    bom domingo pra ti

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  6. Com que então a culpa é da parteira... essa está boa... quando eu entender chamar nome à mãe do menino ou da menina... já sei... Se aprende cada coisa...

    Abraço

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  7. Olá colega e amigo novo.
    Pois em nossos consultórios, temos diversas histórias que dariam um bom livro.
    Essa sua, baseado me parece no real.
    Parabéns por sua competência como cirurgião dentista e pelo seu bom humor.
    Abraços colega.

    Sua nova amiga.
    Regina Coeli.

    Te aguardo em meu cantinho.

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  8. Cirurgia marcada, eu com quinze anos na época encontro dois dentistas para extrair um dente no céu da boca (parecia mais um saca-rolhas, guardo até hoje) me encontrava na mesma situação do sujeito da tua história, estava tão difícil o trabalho que um deles me afundou o malar. Gostei muito da crônica. Abraço

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  9. Adorei.

    Eita trem doido essa de ser invadida por mãos hábeis porém entranhas. kkkkkkkk

    Me diz uma coisa, esse tal fulano lhe pagou a consulta? kkkkkkk

    beijo paulista em ti

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  10. Estou por aqui, nunha bela manhã de sábado, com a chuva caindo, caindo...então resolvi passear por outras letras suas. Encontro essa. Caramba! cem mãos dentro da boca. Mas não é que você acertou na quantidade. Tenho tanto pavor do cenário que compõe o consultório dentário - que vejo mãos a me espremer por todo o lado. Bom! mas a saída do seu paciente foi bem interessante. Prá que esculhambar a mãe do cara?
    Gostei muito
    Um abraço

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