Deixe a luz passar!

Deixe a luz passar!
Fiat lux!!!

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Maldito companheiro!!!


O ar já não tinha toda a poeira solta mas uma umidade refrescante trazida com a brisa de setembro. Todos os anos dizia que um dia sairia dali e não mais teria que suportar o inverno quente e seco do cerrado. A bronquite o consumia ano após ano, afinal não se fica mais jovem com o passar do tempo e os pulmões que antes aguentavam tantos cigarros, hoje imploram por ar puro, sem poluição.
Lembra de quando começou com o maldito vício. Tinha dezesseis anos e o exemplo contínuo dos pais fumantes. Quisera manter-se afastado de fumo, mas, inconscientemente, havia o apelo visual e olfativo a cobrar-lhe, a dizer-lhe que se eles o faziam, então não era de todo tão mal. Resistia. Até que em um desses dias em que tudo parece ser favorável ao impossível acontecer, o inevitável se apresenta sem sutilezas, sem reservas, sem razão alguma aparente, sem medo sem a menor consciência e então com um simples ato de se pegar um fósforo, levar o cigarro à boca e acendê-lo, dar a primeira tragada e sentir os pulmões apertados, sufocados pela fumaça insana, tossir meio desajeitado e em seguida ter vontade de jogar o bastão branco de papel e fumo em brasa fora, mas qual nada. O orgulho é assim, nos deixa perplexos e apáticos diante da imbecilidade cometida, sem reação momentânea. Passado esse momento, vemos que estamos vivos e que talvez, em outra hora possamos tentar de novo dar outra tragada. Assim fazemos e repetimos e repetimos até não mais pensarmos nas conseqüências desses atos banais, só tendo a certeza da estupidez ao atingirmos idades em que os pulmões reconhecem o que é ar puro e ar ruim. Quase sempre já é tarde demais, pois o comprometimento alveolar já não permite uma troca volumétrica simples, os alvéolos já não têm a mesma força de compressão. Os avisos gratuitos de médicos e amigos bem intencionados não foram suficientes e bombardeiam a memória a todo instante.
Lembra também de quando parou de fumar. Acordou cedo e levantou meio atordoado. Foi para a cama tarde na noite passada. Antes de deitar, abriu a janela do quarto, debruçou-se na janela e acendeu um Carlton, grande companheiro das noites: as boas e as más. Tragou longamente, repensou o dia, prendeu um pouco mais a fumaça, tentando sorver o sabor e as sensações que não estavam contidas naquele ato e tampouco no cigarro, para liberá-la lentamente, à medida em que levantava o olhar ao céu estrelado. Talvez essa fosse a sensação mais próxima de prazer que se pudesse extrair do ato, e só mesmo. Mas sua intensidade era tal que iludia a percepção de um modo particular e egoísta; seu. O dia seria corrido. Mas agora não tinha pressa, estava tonto, deixou-se cair na cama secamente e ali permaneceu dez, quinze minutos, imóvel, quase voltou a dormir, mas as obrigações falaram mais alto. Levantou-se de vez e no chuveiro afastou a preguiça e o mal estar matinais. Prometeu não acender um cigarro sequer naquele dia; esperava realmente cumprir sem saber como.
Chegou no ponto de ônibus, cumprimentou os velhos conhecidos, fez sinal para o terceiro que vinha chegando. Embarcou, cumprimentou o cobrador, pagou a passagem, transpôs a roleta , sentou-se, como de costume, na parte média junto á janela a olhar a paisagem que bem conhecia de idas e vindas diárias nesse trajeto para a faculdade. Nada passava por sua mente que merecesse menção. Desembarcou no ponto final e começou a caminhar em direção ao campus. Encontrou um amigo, mais um e mais outro, trocaram cumprimentos e logo já estavam sentados na sala escutando um professor de pálpebras inchadas e de olhar caído, que sempre lhe remetia à figura de um bulldog. Isso o deixava com a sensação de amizade, que nunca teve, com o professor, pois tinha muita simpatia para com essa raça de cães. Não se lembra quando o professor saiu e outro entrou ou mesmo quando saíram da sala. Quando se deu conta já tinha passado o dia e não se lembrava de ter fumado nem um cigarro sequer. Seria possível que tivesse fumado, mas não sentia o gosto característico. Isso somado à falta de lembrança dava uma margem razoável de certeza de não ter fumado. Não tinha fumado.
Um dia inteiro sem cigarro e nem se deu conta. Agora sabia que era possível sobreviver sem o vício e extingui-lo de vez.
Na manhã seguinte acordou com o costumeiro gosto insuportável na boca, mas decidido a continuar com o processo. A rotina se deu normalmente e mais um dia abstêmio.
Os dias se passaram, tornaram-se meses e sem cigarro. Já nem sentia mais o gosto desagradável, mas sim uma intolerância incomum ao cheiro da fumaça de cigarros, especialmente se estivesse resfriado. Só podia ser alergia desenvolvida pela prática tão longa de fumar.
Mas, em uma manhã qualquer entre aquele primeiro dia de abstinência e esses todos decorridos sem o fumo, algo diferente lhe chamou a atenção. Lembrou-se do sonho que tivera. Nele havia fumado um único cigarro, apenas um miserável deslize e era como se realmente tivesse fumado, embora tivesse plena convicção de não tê-lo feito. Isso sabia. Mas então por que tinha aquele terrível gosto já perdido havia meses? Sem resposta continuou sua rotina. Outras manhãs como essa se repetiram e a vontade de fumar começou a ficar forte, mas não tão forte a ponto de sucumbir a ela. Resistia bravamente. Continuava intrigado, quando supôs que talvez fizesse parte do processo de desintoxicação todas aquelas sensações matinais que desapareciam com o passar do dia. Ficou mais atento. Desconfiou de uma possível dependência química pelo uso do tabaco. Lembrou-se do drama de Christianne F, uma garota alemã viciada em heroína, para largar o maldito vício. Bem, mas comparar tabaco com heroína é forçar demais as situações. Esqueceu. Anos depois assistiu a uma entrevista em um programa de TV que acompanhou um processo de um ex-fumante que tentava provar na justiça americana que o tabaco provocava dependência química, havia até cientistas envolvidos e dispostos a revelar que uma empresa americana modificava o tabaco para provocar dependência. Não estava tão longe da verdade.
Tudo isso era confortante saber e relembrar menos, é claro, o fato de ter começado a fumar e agora sentir os efeitos maléficos e irreversíveis de seu uso.

Semana passada nos despedimos dele em um sepultamento simples e, curiosamente, só seu filho mais velho fumava entre os presentes.