Deixe a luz passar!

Deixe a luz passar!
Fiat lux!!!

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Alfa ou Ômega...!

O trem balançava e com ele os pensamentos. Já fazia um ano e meio que sua rotina era determinada pelo trabalho arranjado por um “padrinho” que nem mesmo chegou a conhecer. Seu pai, um motorista profissional, foi quem conseguiu, por meio de um vereador, a vaga de porteiro no centro da cidade. No começo adorou sair de uma estatística e entrar em outra, menos vexatória, mais digna, pensava e gostava dessa imagem: estava empregado e com carteira assinada. Mas, as estações mudam e com elas o humor de muitas pessoas. Ele, que atravessou um verão, um outono, dois invernos e duas primaveras, via-se agora sendo empurrado ou se empurrando para o próximo verão sem o menor entusiasmo, diz mesmo que odeia, não o serviço em si, mas o ir e vir diário. As horas perdidas desde o despertar até a volta para casa no transporte popular somam-se, em estresse, mais do que as efetivamente trabalhadas. Isso não está certo. Precisava ter um emprego mais próximo de casa, dizia sempre. Os tempos eram difíceis, a crise não deixava muita escolha. No fim de setembro vislumbrou uma remota, mas esperançosa possibilidade de conseguir a vaga de porteiro do clube de futebol local. O salário era menor e incerto, contudo a crise chegou e o impediu, o clube faliu. Perdeu a grande oportunidade de sua vida. Maldita crise, pensava todos os dias enquanto o trem deslizava cambaleante sobre os trilhos da Leopoldina e da Central do Brasil.

Sentia falta de folgar aos domingos, sentia falta de folgar qualquer dia que fosse, não importava. A maioria dos amigos, sem emprego, reunia-se no campo do clube abandonado para uma pelada todo domingo de manhã. E se eu tivesse sido jogador de futebol? Será que me lembraria desse lugar escondido no pé da serra? Os pensamentos continuavam a maltratá-lo por toda a viagem de ida e vinda, todos os dias. Até que resolveu tentar uma coisa nova. Jogaria na megasena aos sábados. Queria jogar às quartas também, mas o dinheiro faltaria ao pão das quatro filhas, então decidiu-se pelo sábado e não pela quarta, pois nesse dia o sorteio parecia ser maior, só parecia, mas foi o que fez. Jogou, torceu, rezou para todos os santos e pediu a todos os orixás que o ajudassem com o sorteio. Sábado passado, quando um desses, não se sabe qual, portanto é lícito pensar que todos podem ter colaborado de alguma forma, ninguém sabe, resolveu ajudar o pobre porteiro.

Chegou em casa ainda sem saber do resultado. O dia foi triste. A senhora do escritório de contabilidade, a que lhe trazia sempre um contagiante bom dia acompanhado de um simpático sorriso, faleceu. Quem lhe contou foi o encanador do prédio, o Tião. Não gostava muito do Tião até aquele dia, mas ao ver as lágrimas brotando de seus olhos, viu que tinham algo em comum: a amizade pela senhora Flor; assim ele a chamava. Morreu de “infarte fulminante”, pelo menos foi o que disseram lá no escritório. Morava só, na Abolição. Ele nem percebeu que ela não apareceu para trabalhar naquele dia pela manhã. Também com tanta gente subindo e descendo, não podia mesmo se lembrar, nem mesmo de quem fazia seu dia mais ameno. Lamentou-se, mas resignou-se quase que simultaneamente.

Tomou banho, a mulher o serviu como de costume e reclamou da Julieta, a filha mais velha, oito anos. Contou que ela brigou na escola e mostrava as marcas de arranhões no rosto. Segunda -feira, ela, a mãe, precisava conversar com a professora e a diretora. Isso não ia ficar assim, a outra menina era bem maior e mais velha, tinha dez anos e morava naquele bairro depois da Praça do Macaco. Enquanto comia, a voz da mulher sumia, até que não ouviu mais uma só palavra. Essas ausências eram a forma que encontrou para não enlouquecer de vez. Não sabe bem como aconteceu, mas voltou à mesa de fórmica lisa e azul e se deu conta de que ainda não tinha conferido o resultado daquele dia. Ignorou uma vez mais as falas da mulher, caminhou autômato até a estante pequena, a qual sustentava a estatueta de São Jorge a ponto de desferir o derradeiro golpe sobre o dragão, forrada com papel rosa, picotado como bandeirolas, comprado no bazar do Joaquim. Levantou a estatueta e pegou o cartão, sentou-se no sofá de plástico florido, ligou a televisão e esperou em silêncio pelo noticiário. Antes de anunciar os números, o apresentador informou que nesse sorteio houve um e apenas um ganhador de muita sorte, pois o prêmio era de cinqüenta e três milhões, cento e vinte e quatro mil, seiscentos e oitenta e dois reais e trinta e nove centavos. Pensou que bem podia ser ele, apesar da quantia ser muito alta. Não queria tanto assim, preferia ganhar o suficiente para melhorar a vida das meninas e da mulher, trabalhar menos, ter mais tempo em casa, jogar bola com os amigos aos domingos. Esse era o sonho de sua perfeição, voltou a tempo de ouvir a sequência de números e conferir com os de seu cartão. Houve um lapso de tempo entre a conferência do resultado e a euforia que o tomou. A mulher não entendeu bem a reação. A ida à escola ainda a incomodava. Perderia tempo e o almoço atrasaria. Isso a tirava do sério. Entendeu menos quando ele, mudo, levantou-se do sofá e foi para o quarto. Não disse nada, apenas saiu da sala levando seu cartão de loteria.

Dormiu e saiu cedo, como sempre. Chegou no serviço, esperou a hora do almoço e foi checar os números na loteria, lugar que visitou durante nove meses. Conferiu uma, duas, três vezes e saiu. Voltou ao trabalho e cumpriu seu ritual. Até hoje ninguém mais o viu, alguns dizem tê-lo visto vagando pela Lapa, outros juram que ele tomou um navio grego na Praça Mauá e foi-se para a Europa. O fato é que sumiu, desapareceu. A mulher consultou um guia espiritual que afirma - e ela acredita: “ Ele foi abduzido por seres de outro planeta e é responsável por um portal de teletransporte no Tibet”.